sábado, 13 de outubro de 2012


se não se nota o que um poeta diz
que há-de ele fazer?
a brisa vai
os pássaros voam e recolhem-se
é assim
as tais mãos verdadeiras
se não forem vistas    usadas
não mostram
não oferecem os grãos de luz
e é neles que se recolhem os pássaros
e os versos inúteis
um poeta diz qualquer coisa parecida
com o que está além do horizonte
e pronto


sexta-feira, 4 de maio de 2012

ao fim de anos sem conto
uma antiguidade
muitos anos a comer à mesma mesa
interessando-se sempre pelo pão
pelas migalhas
compreendeu que se afastasse um pouco
a cortina da janela
teria mais luz

Imagem: Pintura de Teresa Dias Coelho

quarta-feira, 11 de abril de 2012

javisol


Vi uma embalagem de Javisol.  Há muito que não via. Dantes via mais Javisol. Fico talvez à espera que a palavra diga um pouco mais do que anuncia com as suas letrinhas bem juntas, estalando na visão, mas não pode anunciar mais do que o produto dentro da embalagem. É lixívia que se propõe uma brancura e desinfecção total sem estragar. Javisol a escorrer de uma ponta a outra do torrãozinho pátrio é que era. 

Imagem: Morte de Orfeu, de Albrecht Durer

terça-feira, 27 de março de 2012

a serpente aveludada


para não enlouquecer   
controlava-se
controlando-se   
enlouqueceu

Imagem: "Tentação e queda de Eva", de William Blake

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

pinchar do melro


Ali, acima da terra, não se dão as ervas. É domínio dos veios da árvore, um relevo de veios. O melro pincha sobre as raízes visíveis, pincha à vontade, sem incomodar as patas com os farripos verdes. E isso que importa no concerto das nações? Nadinha. Vai valendo a putice dos mercados financeiros e outros miseráveis entretenimentos.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

o artista pergunta


nos últimos dias do inverno
e a neve não lhe escorre nos lábios
o artista dá uns passos adiante com a gaiola na mão
afinal    por onde anda a beleza
a pergunta é tão inofensiva que nem aos pássaros ofende
o artista crê que a gaiola é uma luzerna antiga
pousa-a
a paisagem ilumina-se
então    ele espera


Imagem: Noite, de Edward Burne-Jones

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

umbigos e sistemas


Dos sistemas de Ptolomeu e de Copérnico, mais ou menos, vamo-nos lembrando, mas será que nos vem à lembrança o sistema proposto por Tycho-Brahe, o astrónomo dinamarquês da segunda metade do século dezasseis? Na gravura – de um manual português de geografia do século dezoito – estão desenhados os três sistemas. O de Ticho-Brahe é o C. Nele, a Terra está ao centro e em volta giram a Lua e o Sol, e em redor do Sol giram os planetas conhecidos na época, Mercúrio, Vénus, Marte, Júpiter e Saturno. No último círculo, também em volta da Terra, gira o manto de estrelas. Não se tornou o sistema mais seguido, mas teve uma verdade observada que lhe garantiu a discussão e a possibilidade. Havendo por aí tantos umbigos que são o centro do universo, haveria o sistema de Ticho-Brahe, ou mesmo o de Ptolomeu, de perder o seu fascínio?

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012


faça-se campanha por um lugar ao norte
às portas do céu
época de feiras e lareiras
andam os bichos ao bom frio e já não as nuvens ao relento
no eiró     no café do rato
um bom licor de sabugueiro
para deitar a voz aos deuses

um céu que se oferece não exige esforço

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

reposição


às vezes gosta-se tanto de um livrinho que até se gosta mais de o não ler. ficamos ali à voltas do título e do miolo como no mítico bife com ovo a cavalo – isto se acreditarmos em Barthes -  torneando a carne, banhando-a persistentemente com o molho, recortando o ovo, repensando a arte ser carnívoro. goste-se pouco ou muito das edições digitais, um livro é ainda aquela coisa que traz, por exemplo, o aroma das margens do Nilo. o livro é vegetal até ao fim da alma.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

rapariga na piscina com biquini amarelo




posso fazer-lhe um elogio?
ao sol é mais do que um astro
muito mais do que a lua
continue deitada    menina
outros lhe hão-de louvar a beleza
não dizendo nada
não imagina que lhe dedico palavras
há uma arte
que é o de trazer secreto o íntimo desejo
    vá dormindo na vida
dar-se conta de que estou eu aqui
talvez lhe desse desacerto nos dias    talvez
que importância tem abril neste caso?
morreremos    eu sem lhe dar o beijo
e a menina sem o saber

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

teatro


Quando muita coisa falha e a justiça fica escondida por vontade das ganâncias, e dá-se a parecer que o teatro é um luxo que alguns teimam em manter com os seus brilhos vindos da arte de ensaiar e transfigurar a vida, vem-me a lembrança de Epidauro e a necessidade de lhe honrar a presença e não só a arquitectura, mas, sobretudo, a gentileza de um encontro entre almas apaixonadas pela natureza dos mundos, os que ainda conseguimos viver e os que andam além das nossas ilusões. A responsabilidade de manter vivo esse lume é de todos nós, os que se interessam por inventar outras almas e histórias e os que anseiam por visitar os lugares onde podem desfrutar das invenções. Epidauro, todo o teatro, é a presença da humanidade. Irreparável seria se houvesse esquecimento, sequer a tentação de pensar que poderia ser esquecido. Simplesmente, já não será possível. Continuemos, então, o luxo de Epidauro.
*
Imagem: Epidauro (foto: autoria desconhecida)

natividade e representação


A crente esteve sentada, e depois ajoelhada, na coxia, numa das fileiras de bancos quase diante da cruz central da igreja. Enquanto rezou deixou pousado no banquinho em frente o embrulho com o bolo-rei da pastelaria Suíça. A uns metros da imponente cruz, para a sua esquerda, a imagem de um Cristo, colorido, redentor e com auréola. No tempo que ali se demorou, notava-se que a devoção era maior do que tudo. Era um tempo largo, sem contratempo, a não ser, talvez, a pressa feliz de levar o bolo-rei para casa e colocá-lo no centro da mesa, rodeado de pinhões, sultanas, rabanadas e aletria. A devota acabou a sua oração. Levantou-se, pegou no embrulho da pastelaria Suíça, deu uns passos para a sua direita, colocando-se bem diante da imagem de Cristo, e ajoelhou-se de novo, benzendo-se. Menorizou a cruz central. Havendo uma e outra, preferiu o homem.