quarta-feira, 31 de agosto de 2011

limites



Um braço da vinha vai ao loureiro e toma conta dele. Dá-lhe o gosto das uvas que irão chegar. As folhas são de verde novo. E depois? Vê-se a geografia, é isso. Limitado por fora é o loureiro, ilimitado por dentro.

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Imagem: Uvas, vindima e vinho, Antigo Egipto

depois, frutos


Não se aborrecem com a tinta. Num golpe são o instrumento e entram na glória de ser quase o princípio do verso ou da pintura. Efémeros como tudo, guardam-se em cada estação, escondendo-se do que foram capazes de realizar. Há quem os veja num sonho de verão ou no deslizar das neves. Estão sempre a tocar o ar e com o tempo tornam-se frutos, frutos maduros, dióspiros. Os dedos.
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Imagem: Pintura com tinta Sumi

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

crítica à europa


Não tinhas nada que ser amada por Zeus    Europa
agora é o que se vê    Ele foi deitar-se na praia feito touro
os cornos fingindo luas e tu toca de lhe acariciar o pêlo
e ele vai contigo mar adentro    é o que diz o relatório da cultura
e metem-se de amores em Creta    parece que debaixo
das ramadas de um plátano e vieram os filhos
mas o que me interessa é o estado
a que isto chegou    minha querida
os teus bisnetos num desemprego parvo    muitos sem tecto
e perguntando-se por que raio foi ela
meter-se com o pai dos deuses?
Raptada     nós sabemos    mas mesmo assim    Europa
em Creta há tantos rapazes porquê Zeus
que é hoje um banco alemão?

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Imagem: Europa e o Touro, vaso grego, 450 aC

domingo, 28 de agosto de 2011

ainda há festa


Algumas vezes é a sombra que entontece no bailarico. Desviamos o pulsar das pálpebras e chega-nos um sopro de luz. A claridade toma conta de nós e dos fios do bosque. O caminho vai sendo a reza entre o calor, com o fresco, e a festa, e estão anunciados os musgos lá mais para diante quando as nuvens forem rasteiras. Para já, não. Para já, os ribeiros ainda brilham com os insectos, as bandas tocam as suas marchas de verão e a gente baila. 
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Imagem: O Baile, de Paula Rego

sábado, 27 de agosto de 2011

o que diz o escriba


Nada, nenhum verso, nenhum assombro. Tudo é ainda obscuro à saída dos lábios. Tão antiga é a fala, os sulcos da escrita, como as primeiras tentativas para compreender a neve e as romãzeiras, mas a água chegará ao deserto e antes que os dedos escrevam a dor, ou até o amor, haverá a música e a dança. O sangue esquecerá a mortalidade e o pão virá do céu, não das espigas. Uma espécie de felicidade, diz o escriba.
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Imagem: O escriba sentado, alabastro e calcário, Egipto, 2600 aC, Museu do Louvre

morada


Estão com o tremer das línguas, as falas paradas e a perturbação dos ossos, e não sabem como visitar a infância. Ficam-se a olhar as janelas esperando que o jardim traga as brincadeiras e mordem uma ou outra lembrança dos vidros que tantas vezes foram a cortina para o mundo. Eles vêm do futuro, chegaram atrasados, e a casa já não pode contar-lhes nada. Agora é abrigo de pássaros, uns mais ligeiros do que o vento e por isso desinquietando o pó das traves, que rebrilha enquanto cai, muito depois da passagem das asas. Rolam os olhos no voo dos pássaros, e é tudo.
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Imagem: foto (detalhe) de Luís Vasco

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

os dias ardem. e o mel?


Os dias ardem com a violência humana, é uma porcaria e dá sombra, muitíssimo mais do que não haver o sol, a noite no interior das cataratas, o negrume das cinzas ou a plumagem dos corvos de relance nos olhos. Há mais fome a sul e menos gelo a norte. Há que ter vergonha diante das trutas, das perdizes, dos lobos. Diante de tudo. Ainda acontecem as flores, mas quem dá ouvidos ao mel?

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

enigmas


Mulheres de leite acordam com os seus enigmas. Vão pelas ruas estreitas ainda com o orvalho e não podem trocar por ouro o segredo que levam. Os caminhos são de estrume e valem muito por isso, por serem mais ricos do que os outros, que são de asfalto e doutros tempos. É cedo quando as ovelhas começam a balir, é uma fala quente, e elas, as mulheres, habituaram-se a gostar. Tornaram-se muito pacientes, as mulheres com os seus enigmas. Sofrem, riem e dormem e seguem todas as manhãs em direcção ao sol.

no horizonte, o dia


O sonho dividido entre artes e manhas. É um acordar lento, ainda adormecido, e a luz tem influência. Pouco vê, mas também não importa. O que resta do sonho ainda vale. Vai ao mar e atira-se lá para dentro na esperança de acordar melhor. Respira entre os peixes como um pequeno príncipe e a pele muda de cor com o sal e as algas. Lembra-se do futuro quando os peixes eram à medida da sua existência, de mãos habituadas às coisas adultas. Os peixes eram, então, coisas assim e veio para cima. Sentou-se à mesa. “Nada de fitas e come!”, desferiu a mãe. “Não tenho fome.”, disse ele, meio confundido, incompreendido. “Ao menos bebe o leite.” E ele bebeu.
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Imagem: Gravura em Foz Coa

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

ali, na almirante reis


Por instantes, ali na Avenida Almirante Reis, em Lisboa, na direcção de uma das entradas para o metro do Intendente, costumava observar um engraxador que montou serviço debaixo de uma arcada junto de uma loja de móveis. Sempre vi o senhor, que era uma figuração do mutismo, sentado no seu banquinho, de costas para os passeantes, de frente para o vidro da loja, e certamente via quem passava ao modo dos abrigados da caverna de Platão. Tinha uma folha de papel fazendo de toalha sobre o assento dos clientes, uma marmita, o talher, e comia com gosto. E era por vê-lo comer com gosto diante da montra da loja, fazendo pausa na obra, que eu desço com a sua imagem para o metro, seguindo eu agora sorte dos meus dias. A loja junto da qual o engraxador praticava o seu ofício chamava-se Móveis Apolo. Chamava-se.
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Imagem: Apolo, vaso grego

terça-feira, 23 de agosto de 2011

três poemas


EVA
a sombra dela no branco da parede
inteiramente nua
eva é ave insinuada onde há cal
sei que é porque está lá
não assustada com a voz
mas com estes dedos
que lhe escrevem a nudez e depois a plumagem
assim
é muito fácil que eva seja ave


A VIDA JAPONESA NA CALÇADA DE LISBOA
vi inteiramente nua    vi    um pedaço de Japão
uma bandeirinha de sol pôr    de sol nascente    é sempre
uma e outra coisa    um regaço de mundo    o colo
os lagos    Kyoto e a beleza
quando se vê uma bandeirinha do Japão numa calçada de Lisboa
olha-se e pensa-se    olha uma bandeirinha do Japão
papelinho de não sei de quê    delicadamente na rua
inteiramente nua a vida japonesa


EMBORA SENDO TU    NÃO ÉS DA MINHA NATUREZA
ele disse esta manhã   
neva no coração    no teu mistério
e agora?   
não há acordo    disse ela
eu sou
da mesma natureza que os pássaros que conheço
os do quintal   os do bico vermelho
os que vêm bicar as cerejas
e se sou da mesma natureza
vou partir de novo porque antes de aqui chegar
parti de outro lugar
agora vejo    disse ele
o teu coração andou para um rosa diferente   
e afastaram-se   
primeiro ele   
depois ela