sábado, 31 de dezembro de 2011

andemos


Há neblina na costa. A surpresa é a luz, não o húmido que gosta de cortinar a paisagem. É uma pradaria sem bisontes, a costa, uma areal de visitas. Enquanto isso, vem uma canção de Charles Trenet e pombos e pardais tomam banho na fonte do jardim. Há o cheiro do pão, as pedras coloridas no jogo de xadrez e também as figurinhas do Príncipe Valente. Escutai, ó almas!, a vida é isso - diz um espírito benigno com sorriso e flor ao peito – andemos enquanto for o tempo.
*
Imagem: Going home, de Thomas Hart Benton

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

olaia


Os galhos da olaia estão de inverno, sossegadas. Quando vierem os primeiros rasgos de rosa vivo vai ser uma cantoria a dar fogo ao céu, e se ele for azul, sem as nuvens de Goethe, melhor o lume. Uma categoria de galhos.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

sem título


Os dias crescem por aqui e nem o Códice de Dresden - que ainda assegura a clarividência Maia no quase nada que escapou à violência dos conquistadores espanhóis nos idos de quinhentos - atrofia a luz que virá com o seu riso e borboletas. Parece que os hieróglifos maias sugerem uma interrupção nas civilizações no solstício de inverno de 2012. Uma crença na perturbação gerada pelos alinhamentos cósmicos, mais a intensidade solar - garantida pela astronomia - são os motivos de força maior. Melancholia de Lars von Trier anda perto do sentimento da derrocada, querendo antecipar no cinema a experiência da dissolução. Que o mundo anda com os nervos à flor da pele isso parece ser o facto, embora haja lugares e gente com os corações tranquilos. Que interessa aos mercados financeiros, aos especuladores da bolsa, o sono dos faraós ou a dança dos pirilampos?


Imagem: Calendário Maia; Kirsten Dunst em “Melancholia, de Lars von Trier

sábado, 24 de dezembro de 2011

esperança



Mestre, chefe, patrão, vizinho, tudo nomes quando não se conhece o nome. A gritar, o talhante corre atrás do homem, ó vizinho! ó vizinho! O homem para, reconhece o talhante e volta atrás. Não é porque o céu está limpo de nuvens que o seu nome está oculto no azul. Poderia haver uma esperança qualquer no acto de ser chamado. O homem volta atrás e o talhante já não avança na rua. É um saquinho que o talhante leva consigo e que o homem esqueceu no balcão do talho. O homem agradece. Sempre deve agradecer-se um acto de gentileza. Sabe-se lá o que leva o saco. Uma esperança qualquer. Sim, talvez.

*
Imagem: Recanto de jardim, de Ignacio Pinazo

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

inverno


Se as coisas não fossem assim, seriam assado. É uma lei para as coisas. Os Outonos carregam-se de frutos e possibilidades e há quem encontre na música, num quarteto de Haydn, por exemplo, um abrigo para os dias menos macios. Quem diz Haydn diz a música dos mestres. Pode ser que um verso sem método, ainda com o aroma verde de um ouriço de castanha que se abre, escorregue do coração aos lábios e ali fique, tal qual um som, à espera de alguém ou de um pássaro. Depois, será Inverno.

Imagem: Natureza-morta, Michelangelo Caravaggio

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

ainda a pintura


“(...) qual é o objecto da pintura: a imagem do homem, por exemplo, ou o homem que a imagem representa?” 
Wittgenstein, Tratado Lógico-filosófico

Imagem: Auto-retrato, Rembrant

sábado, 26 de novembro de 2011

encostados ao cenário


há a mulher que está à janela e sonha
com o homem e um homem
à espreita num bar
mas estes não contam    falo de outros
encostam-se ao cenário e sofrem    compreendem
finalmente que sofrem    
para os que esperam muito dela
muito expectantes    a vida é uma fraude

Imagem: A fonte da juventude, de Lucas Cranach

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

este mundo


Do mel vêm-me os ramalhetes do lameiro com ares de mundo antigo. As vacas iam para a eira cansadas com os seus carros e o chio rasgava o tempo e a paisagem, e agora a lembrança. Eram dias doutro império. Ehhhh boi ehhhhh!, dizia-se com o pau a tocar o jugo, e o carro ia com a lentidão das rodas cantadeiras, alinhavando os trabalhos do futuro. Ouviam-se os insectos e ainda os ferreiros. O mel faziam-no as abelhas. Sim, eram as abelhas. Agora, vão desaparecendo. Se as abelhas desaparecerem que será do mundo?

domingo, 6 de novembro de 2011

pintura

Não é tanto por haver vida em tudo, mas o regalo de o saber. Se algum tumulto se dá ao alcance da vista, estende o braço com lentidão e a paisagem amansa aos seus dedos. A festa nunca abranda. Como é possível? É um optimista e escreve isso com os lábios. Sobre a pintura.

*
Imagem: olhos de Frida Kahlo

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

centro campista quer amar depois da bola



o caso dá-se nos balneários   
o centro campista quer amar e diz a coisa
antes de entrar no chuveiro    depois
repete para si    já são horas  e eu aqui
então    sai do estádio com a pressa toda  
num carrão gt qualquer coisa    não sei   
lá vai o centro campista    diz o puto
com a camisola do campeão


quarta-feira, 19 de outubro de 2011

verme e financeiro de elite


O verme parasita a alma dos inocentes e o gozo é mais do que o riso, que se ouve do lado de fora, no lado de cá, na rua que ainda pertence aos inocentes, aos aldrabados. O riso é sem vergonha. O gozo denuncia o verme e ele veste-se de financeiro de elite. Corre as persianas de metal fino, desce ao carro blindado e guarda o riso. O verme disfarçado dá instruções ao motorista e segue na avenida financeira, cada vez mais depressa. Dá-se conta dos inocentes a desaparecerem nas margens da avenida. Dá-se conta e rala-se nada. Mais depressa vai e não conhece fronteiras. Bebe, não fuma e etc. Sobe à central financeira, ao último piso. Agora não passam aviões. Dá-se de novo ao riso e, mais tarde, outra vez ao gozo. Descerá depois ao carro blindado e subirá ao piso de elite. E descerá e subirá, gozando e rindo. Assim, até ao juízo final. 
*
Imagem: Luboff and Doves, de Max Sauco

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

gansos e financeiros


incompreensível é a penugem dos gansos ou a casca verde das nozes
incompreensíveis há muitos    catrefadas deles
o terrorismo financeiro com as suas claras intenções
não é um incompreensível    é por isso que
entre um ganso e um financeiro de elite
não há nada que os distinga quando pensamos em mortalidade
um financeiro de elite não tem penugem e morrerá
*
Imagem: Kouros de Anavissos, 530 aC

domingo, 16 de outubro de 2011

rua 15 de outubro


Uma frase sai de um sonho e diz teoria do homem inventado. Assim, sem mais, sem nuvens em volta, sem ar frio, num golpe de ciência escondida. Homem, aqui, é mais pessoa. Irei procurar essa teoria durante todo o dia e talvez ainda amanhã e depois, depois. É natural que algumas ideias venham autorizar a tal pessoa e também a sua teoria. Se assim for, se houver esclarecimento e se florir a justiça que está no cosmo, é possível que as coisas ardam de vergonha e haja um futuro qualquer que não seja o da devastação por mãos humanas, antes mesmo dos asteróides. Hoje - e ontem, exactamente hoje e ontem - em muitos lugares do mundo, há mobilidade pública em favor das pessoas e alguma teoria irá estampar-se nos rostos, escorrendo, nalguns casos e sem pieguice, com o suor e as lágrimas.
*
Imagem: Cavaleiro, de Gustave Moreau

terça-feira, 11 de outubro de 2011

o escriba e o voo


O hálito das coisas que voam entra na vocação do escriba e amanhece mais cedo. Há a dor e as pássaros, e o escriba não sabe o que escolher. O voo enfraquece a dor e então ele escreve pássaros. Um traço de tinta sobre o papiro e amanhece.

domingo, 2 de outubro de 2011

natureza


Tudo vai a caminho. Com restos, sem restos, tudo vai. A boca não é mais do que a pedra a luzir nem do que o carvão ainda a fermentar. Se uma nervura é capaz de soltar a música, então que dizer do ar? O ar mete-se nos fios do coração, envolve o caminho. Não sei quantas eternidades chegariam apenas para falar do ar metido no coração. Que natureza fala quando falamos assim?

terça-feira, 27 de setembro de 2011

a tília


Mais um dia vencido. Não tarda que a sensação de vitória se dilua na sombra da tília. Aí, sim, até os antigos têm conferência. A arte é ser tão natureza que nenhum medo venha assustar o devaneio do folhedo.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

mais amoras


O silvedo não se cansa. Os frutos são um pagode de bom gosto, seja caindo em cachos e à mão de quem passa, seja desperdiçando as luzes que trazem dentro e que podemos beber como quem, de boca aberta para a noite, vai respirando estrelas.

domingo, 18 de setembro de 2011

pedra ardida


As coisas ardidas andam esquecidas ainda que sobre elas esvoacem os insectos e as poucas andorinhas dos finais do verão. Pedra branca com sinal de fogo não escolhe quem lhe dá morada na lembrança. Espera a neve e terá sumiço.

sábado, 17 de setembro de 2011

amoras de setembro


Gostamos de inventar novidade na beleza. O verão tem as suas calmas, tem. Reluz ainda nas amoras tardias. A norte reluz ainda nas amoras. Aproximam-se os frescos, e lugares como a Mourela, um planalto na serra, começam a gravar nos rostos a sua geografia, tantas vezes difícil. A beleza continua no ferver das vacas pelos montes, nas urzes e torgos, nas falas mais amenas a prepararem o que aí há-de vir. Virá a repetição, o ciclo das esperas, os níscaros e os choteiros, as castanhas, as matanças e os fumeiros. E lá mais para a frente, outra vez o romper das amoras. 

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

sísifo entre os mercados


Os olhos incham com a descrença, as mãos colam-se à pedra e vem o musgo, o coração hesita no panorama, entre os frutos do antigamente e as névoas do futuramente. Mais próximo da lavoura do que das ondas da metalurgia, o nosso homem está mais descrente. Talvez por ter aceitado a ruína das mãos sobre a terra, mas... um sopro mais e ele teima.
*
Imagem: Street Art, Alexandre Farto

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

os cães por aí



Os cães vêm à fala e dizem, com uma ciência torta
- Vai chover.
E não é que chove?
- Os mercados isto, os mercados aquilo.
E não é que sim, os mercados?
- O futuro já não se aguenta.
É, o futuro aguentou-se. Os cães livram-se de mais falas e desatam a ganir. Infeliz paisagem, esta, que tem de os ouvir.
*
Imagem: Piggy, de Damien Hirst

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

mar de setembro

O mar, Debussy e pouco mais. Olho para a nuvem a olhar para mim e é um coelho com uma garrafa de oxigénio às costas. Penso que deve ser por causa das alturas. Baixo os olhos, um homem passa com cachimbo e calções verdes às riscas amarelas. Abre e fecha os olhos a cada passo, e estamos conversados. O sol vai baixo nos seus degraus de andar no horizonte. Quanto mistério, quanta ciência e estamos assim. Ainda se vêem as dunas, alguns cactos, algumas musas, o barquinho “rei dos mares”, o rancho de banhistas que não me deixa de fora, e o mar enrola na praia e tal.
*

Imagem: "Mad dogs", de Jack Vettriano

terça-feira, 6 de setembro de 2011

douta ignorância


Um grão de céu vem a ser o quê afinal? A música é que talvez saiba, a música sabe. Abrimos o limão na esperança de um som do limoeiro mais antigo, ouvimos o raspar das unhas na casca do citrino, vem o aroma dos óleos refrescantes e é a música... é a música! Continuamos ignorantes.
 *
Imagem: Lição de música, vaso grego, 510 aC

domingo, 4 de setembro de 2011

café santa cruz


- Um dia vou contigo e ficamos a morar lá na conversa onde há gravuras antigas tão belas que fazem chorar.
É um café cheio com pessoas sentadas, todas leitoras, um mar de livros abertos, as horas passando sem ninguém dar por isso, as folhas dos livros despertando brisas, alguns cães, na rua, à espera dos donos, céus abertos e fechados, tremelicar de lábios por causa dos sorrisos, e a leitora relê a frase e fica com ela, fecha a boca, os olhos e fica com ela. Talvez seja o café Santa Cruz, em Coimbra. Uma névoa diz que sim. Um dia vou contigo e ficamos a morar lá na conversa onde há gravuras antigas tão belas que fazem chorar – repete, para si, só para si, eternamente para si.
 *
Imagem: Café Terrace à noite, Vincent Van Gogh

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

limites



Um braço da vinha vai ao loureiro e toma conta dele. Dá-lhe o gosto das uvas que irão chegar. As folhas são de verde novo. E depois? Vê-se a geografia, é isso. Limitado por fora é o loureiro, ilimitado por dentro.

*
Imagem: Uvas, vindima e vinho, Antigo Egipto

depois, frutos


Não se aborrecem com a tinta. Num golpe são o instrumento e entram na glória de ser quase o princípio do verso ou da pintura. Efémeros como tudo, guardam-se em cada estação, escondendo-se do que foram capazes de realizar. Há quem os veja num sonho de verão ou no deslizar das neves. Estão sempre a tocar o ar e com o tempo tornam-se frutos, frutos maduros, dióspiros. Os dedos.
*
Imagem: Pintura com tinta Sumi

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

crítica à europa


Não tinhas nada que ser amada por Zeus    Europa
agora é o que se vê    Ele foi deitar-se na praia feito touro
os cornos fingindo luas e tu toca de lhe acariciar o pêlo
e ele vai contigo mar adentro    é o que diz o relatório da cultura
e metem-se de amores em Creta    parece que debaixo
das ramadas de um plátano e vieram os filhos
mas o que me interessa é o estado
a que isto chegou    minha querida
os teus bisnetos num desemprego parvo    muitos sem tecto
e perguntando-se por que raio foi ela
meter-se com o pai dos deuses?
Raptada     nós sabemos    mas mesmo assim    Europa
em Creta há tantos rapazes porquê Zeus
que é hoje um banco alemão?

*
Imagem: Europa e o Touro, vaso grego, 450 aC

domingo, 28 de agosto de 2011

ainda há festa


Algumas vezes é a sombra que entontece no bailarico. Desviamos o pulsar das pálpebras e chega-nos um sopro de luz. A claridade toma conta de nós e dos fios do bosque. O caminho vai sendo a reza entre o calor, com o fresco, e a festa, e estão anunciados os musgos lá mais para diante quando as nuvens forem rasteiras. Para já, não. Para já, os ribeiros ainda brilham com os insectos, as bandas tocam as suas marchas de verão e a gente baila. 
*
Imagem: O Baile, de Paula Rego

sábado, 27 de agosto de 2011

o que diz o escriba


Nada, nenhum verso, nenhum assombro. Tudo é ainda obscuro à saída dos lábios. Tão antiga é a fala, os sulcos da escrita, como as primeiras tentativas para compreender a neve e as romãzeiras, mas a água chegará ao deserto e antes que os dedos escrevam a dor, ou até o amor, haverá a música e a dança. O sangue esquecerá a mortalidade e o pão virá do céu, não das espigas. Uma espécie de felicidade, diz o escriba.
*
Imagem: O escriba sentado, alabastro e calcário, Egipto, 2600 aC, Museu do Louvre

morada


Estão com o tremer das línguas, as falas paradas e a perturbação dos ossos, e não sabem como visitar a infância. Ficam-se a olhar as janelas esperando que o jardim traga as brincadeiras e mordem uma ou outra lembrança dos vidros que tantas vezes foram a cortina para o mundo. Eles vêm do futuro, chegaram atrasados, e a casa já não pode contar-lhes nada. Agora é abrigo de pássaros, uns mais ligeiros do que o vento e por isso desinquietando o pó das traves, que rebrilha enquanto cai, muito depois da passagem das asas. Rolam os olhos no voo dos pássaros, e é tudo.
*
Imagem: foto (detalhe) de Luís Vasco

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

os dias ardem. e o mel?


Os dias ardem com a violência humana, é uma porcaria e dá sombra, muitíssimo mais do que não haver o sol, a noite no interior das cataratas, o negrume das cinzas ou a plumagem dos corvos de relance nos olhos. Há mais fome a sul e menos gelo a norte. Há que ter vergonha diante das trutas, das perdizes, dos lobos. Diante de tudo. Ainda acontecem as flores, mas quem dá ouvidos ao mel?

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

enigmas


Mulheres de leite acordam com os seus enigmas. Vão pelas ruas estreitas ainda com o orvalho e não podem trocar por ouro o segredo que levam. Os caminhos são de estrume e valem muito por isso, por serem mais ricos do que os outros, que são de asfalto e doutros tempos. É cedo quando as ovelhas começam a balir, é uma fala quente, e elas, as mulheres, habituaram-se a gostar. Tornaram-se muito pacientes, as mulheres com os seus enigmas. Sofrem, riem e dormem e seguem todas as manhãs em direcção ao sol.

no horizonte, o dia


O sonho dividido entre artes e manhas. É um acordar lento, ainda adormecido, e a luz tem influência. Pouco vê, mas também não importa. O que resta do sonho ainda vale. Vai ao mar e atira-se lá para dentro na esperança de acordar melhor. Respira entre os peixes como um pequeno príncipe e a pele muda de cor com o sal e as algas. Lembra-se do futuro quando os peixes eram à medida da sua existência, de mãos habituadas às coisas adultas. Os peixes eram, então, coisas assim e veio para cima. Sentou-se à mesa. “Nada de fitas e come!”, desferiu a mãe. “Não tenho fome.”, disse ele, meio confundido, incompreendido. “Ao menos bebe o leite.” E ele bebeu.
*
Imagem: Gravura em Foz Coa

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

ali, na almirante reis


Por instantes, ali na Avenida Almirante Reis, em Lisboa, na direcção de uma das entradas para o metro do Intendente, costumava observar um engraxador que montou serviço debaixo de uma arcada junto de uma loja de móveis. Sempre vi o senhor, que era uma figuração do mutismo, sentado no seu banquinho, de costas para os passeantes, de frente para o vidro da loja, e certamente via quem passava ao modo dos abrigados da caverna de Platão. Tinha uma folha de papel fazendo de toalha sobre o assento dos clientes, uma marmita, o talher, e comia com gosto. E era por vê-lo comer com gosto diante da montra da loja, fazendo pausa na obra, que eu desço com a sua imagem para o metro, seguindo eu agora sorte dos meus dias. A loja junto da qual o engraxador praticava o seu ofício chamava-se Móveis Apolo. Chamava-se.
*
Imagem: Apolo, vaso grego

terça-feira, 23 de agosto de 2011

três poemas


EVA
a sombra dela no branco da parede
inteiramente nua
eva é ave insinuada onde há cal
sei que é porque está lá
não assustada com a voz
mas com estes dedos
que lhe escrevem a nudez e depois a plumagem
assim
é muito fácil que eva seja ave


A VIDA JAPONESA NA CALÇADA DE LISBOA
vi inteiramente nua    vi    um pedaço de Japão
uma bandeirinha de sol pôr    de sol nascente    é sempre
uma e outra coisa    um regaço de mundo    o colo
os lagos    Kyoto e a beleza
quando se vê uma bandeirinha do Japão numa calçada de Lisboa
olha-se e pensa-se    olha uma bandeirinha do Japão
papelinho de não sei de quê    delicadamente na rua
inteiramente nua a vida japonesa


EMBORA SENDO TU    NÃO ÉS DA MINHA NATUREZA
ele disse esta manhã   
neva no coração    no teu mistério
e agora?   
não há acordo    disse ela
eu sou
da mesma natureza que os pássaros que conheço
os do quintal   os do bico vermelho
os que vêm bicar as cerejas
e se sou da mesma natureza
vou partir de novo porque antes de aqui chegar
parti de outro lugar
agora vejo    disse ele
o teu coração andou para um rosa diferente   
e afastaram-se   
primeiro ele   
depois ela